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Descoberta ocorreu durante projeto de pesquisa em Palmas (PR) e revelou espécie em risco de extinção
É um morcego pequeno, de cerca de 12 centímetros da cabeça aos pés, mas até a sua presença ser registrada em uma área de transição entre campos naturais e florestas de araucárias do Paraná há uma longa história a ser contada. O morcego da espécie Histiotus alienus havia sido documentado pela primeira e única vez por um naturalista inglês em 1916, depois de ser capturado em Joinville, no Norte de Santa Catarina. Assim, teve seu corpo catalogado entre as espécies da biodiversidade da América do Sul no Museu de História Natural de Londres.
Mais de um século depois, o encontro de pesquisadores brasileiros com a espécie, que teve o registro publicado em setembro no periódico ZooKeys, fez avançar o conhecimento sobre esse mamífero voador da Mata Atlântica.
A captura do morcego ocorreu em 2018, durante o trabalho dos pesquisadores do projeto “Mamíferos do Refúgio de Vida Silvestre dos Campos de Palmas e do Parque Nacional dos Campos Gerais”, o Promasto. Financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), o projeto tem o objetivo de documentar os mamíferos dessas duas unidades de conservação paranaenses e já investigou o impacto da descontinuidade das unidades de conservação na vida deles.
O morcego, um macho, foi interceptado por equipamentos para captura chamado rede de neblina, uma rede de malha de náilon instalada em pontos estratégicos do refúgio, que fica em Palmas, cidade de 52 mil habitantes no Sudoeste do Paraná. A unidade de conservação é federal, gerida pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).
A partir daí, começou o longo trabalho de comparação que levou à comprovação da espécie, que teve que ser pesquisada em vários países, incluindo a conclusão na Inglaterra. Afinal, é onde estava o único registro científico do Histiotus alienus, ou seja, o seu holótipo — o exemplar coletado pela primeira vez e que foi utilizado para uma descrição ou representação da espécie, que pode até ser uma ilustração, mas geralmente é um esqueleto, um fragmento ou o conjunto disso com o corpo do exemplar embalsamado.
Mas por que o morcego ficou tanto tempo sem aparecer?
“Ainda temos muito a investigar. Pode ser uma espécie naturalmente rara. Pode ser uma espécie que sofreu muito o impacto da devastação da Mata Atlântica, tanto no passado quanto no presente. Ou pode se tratar de uma espécie que é difícil de ser coletada com técnicas tradicionais”, conta Liliani Marilia Tiepolo, coordenadora do projeto de pesquisa e professora do curso de Ciências Ambientais da Universidade Federal do Paraná (UFPR).
O projeto reúne cientistas do Laboratório de Análise e Monitoramento da Mata Atlântica (Lamma) da UFPR, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com apoio do ICMBio e do CNPq.
Espécie já é considerada criticamente ameaçada de extinção no Paraná
Além de jogar luz sobre uma espécie pouco conhecida da Mata Atlântica, a descoberta também aumenta a lista das espécies de mamíferos do Paraná. Dessa forma, pôde ter seu grau de conservação avaliado pelas pesquisadoras do Lamma, que coordenam a lista vermelha de mamíferos no Paraná. A análise já adianta que especialistas em morcegos acreditam que a espécie corre risco severo de extinção e precisa ser protegida.
“A comunidade de especialistas em morcegos que esteve presente nas oficinas de avaliação foi unânime em considerar que a espécie, em nível regional, passa a ser considerada como criticamente ameaçada de extinção no Estado do Paraná”, afirma Liliani, que é uma das coordenadoras do Lamma, juntamente com a professora Juliana Quadros, também da UFPR.
São vários os fatores que levaram à essa avaliação, que é o grau mais perigoso de extinção. Primeiro, o alto grau de fragmentação dos ambientes naturais onde o morcego vive no Paraná, como os campos nativos e as florestas de araucárias. Hoje as unidades de conservação que protegem estes ambientes são relativamente pequenas e descontínuas, portanto o espaço para o desenvolvimento da espécie acaba restrito.
Outro risco para a espécie é o fato de seus habitats naturais no Paraná estarem sendo transformados em pastagens, monocultivos agrícolas e área comercial de plantio de pinus e eucalipto. Também a expansão da energia eólica em Palmas e das hidrelétricas na Bacia do Rio Iguaçu atrapalham a sobrevivência dos morcegos. A expansão do desmatamento da Floresta Atlântica no Paraná nos últimos cinco anos soma mais um alerta.
A análise deve ajudar a tirar a espécie da lista de “dados insuficientes” da International Union for Conservation of Nature and Natural Resources (IUCN), que mantém um banco de dados sobre espécies ameaçadas de extinção no mundo.
O fato de ter sido encontrada a 400 quilômetros de onde foi coletada pela primeira vez pode significar uma área maior de habitação ampliando sua distribuição geográfica. Em Joinville, a Mata Atlântica é uma floresta ombrófila densa, ou seja, um tipo de floresta sempre verde que precisa de muita chuva.
A região onde a espécie foi encontrada é diferente. É uma mistura de floresta ombrófila mista, que são as florestas com araucária, também com grande necessidade de chuva e geralmente localizadas em áreas mais altas e mais frias, com campos naturais sulinos entre as florestas.
Orelhas diferenciam o morcego de outros mais conhecidos do seu gênero
A curiosidade em relação ao morcego foi imediata, conta Vinícius Cardoso Cláudio, pesquisador da Fiocruz Mata Atlântica. Cláudio é especialista em quirópteros, como também são chamados os morcegos, os únicos mamíferos que conseguem voar por completo. Como os morcegos de Palmas ainda são pouco conhecidos, achar espécies raras ou diferentes era uma possibilidade para o projeto.
O gênero do morcego, Histiotus, foi identificado logo que o bicho foi examinado, porque o pesquisador conhece bem esse grupo. Aqui vale relembrar as aulas de biologia na escola. Para estudar os seres vivos, a ciência busca agrupá-los pelas semelhanças. No caso do morcego, o maior grupo a que ele pertence é pelo fato de ele ser um animal (reino animal), como os seres humanos. De funil em funil, chegamos aos gêneros, que são o último grupo antes da espécie. O gênero Histiotus tem 11 espécies conhecidas de morcegos, entre elas o Histiotus alienus.
As orelhas em formato de vela são a principal característica do gênero Histiotus. Outra é o corpo coberto por pêlos amarronzados. Esses morcegos são insetívoros (comem insetos) e habitam boa parte da América do Sul, locais tão diferentes quanto florestas e montanhas. A dúvida sobre a espécie correta, porém, continuou.
“No momento da captura percebemos que alguns dos caracteres morfológicos [características físicas] eram diferentes do esperado para as espécies que poderiam ocorrer no local, podendo talvez se tratar de uma nova espécie ou alguma espécie não registrada no Brasil”, lembra Cláudio.
Inicialmente, pensou-se que o morcego poderia ser da espécie Histiotus bonariensis, que é mais comum, ou da Histiotus montanus, registrada pela primeira vez no Paraná em 2006. Mas as orelhas não batiam. Entre as características que chamam a atenção no Histiotus alienus estão as orelhas, que são menores do que a dos morcegos do gênero, além de triangulares e conectadas por uma membrana. “Alienus” vem de “estranho”. Ele também tem pelos avermelhados e compridos no dorso, enquanto as costas são cobertas por pêlos escuros.
Daí a necessidade da comparação com o primeiro exemplar recolhido da espécie, que está em Londres.
“É um achado muito significativo, pois traz luz a uma série de novas informações científicas sobre a espécie, sua evolução, relações de parentesco e morfologia a partir de uma nova descrição mais elaborada e detalhada, que poderá ser útil para novas identificações. A descrição original de 1916 era limitada a poucas informações, como era típico na época”, conta Liliani.
Acervos da biodiversidade tropical no Norte Global são expressão do colonialismo científico
O naturalista que descreveu o Histiotus alienus no início do século XX na Inglaterra também tem uma longa história para contar. Michael Rogers Oldfield Thomas foi um ativo mastozoólogo — um estudioso de mamíferos — que trabalhou por décadas para o Museu de História Natural de Londres, aposentando-se em 1923.
Ao se retirar, havia descrito mais de 2,9 mil espécies do mundo todo, número que seus colegas hoje consideram imbatível. Foi também um hábil taxidermista. Então, além de descrever novas espécies, conseguia transformá-las em objetos de exposição para o museu, empalhando os corpos.
Pode-se dizer ainda que Oldfield Thomas tinha ideias visionárias sobre a divulgação científica. Já naquela época era um defensor dos museus e da capacidade de disseminação de conhecimento a partir deles. Por isso, escreveu uma carta de opinião a um jornal sustentando a necessidade de que a entrada para museus fosse gratuita. Também defendia que cientistas adotassem uma linguagem simples e objetiva.
Com seu trabalho e fontes financeiras, que incluíam o acesso à herança da mulher, Oldfield Thomas expandiu a coleção de mamíferos do museu de forma notável. Comprou coleções particulares de mamíferos empalhados e viajou de museu em museu em busca de novas espécies.
Por outro lado, a atuação de Oldfield Thomas acaba sendo um caso da história da ciência que faz pensar sobre o chamado colonialismo científico, que é o uso dos avanços do conhecimento como arma política de dominação sobre outros países. O próprio naturalista deu muitas vezes a entender que trabalhava para essa concentração de conhecimento a favor da Inglaterra.
Isso está registrado, por exemplo, na coleção de cartas do zoólogo estadunidense Gerrit Smith Miller guardada pelo Museu Smithsoniano, nos Estados Unidos. Um estudo informal sobre o conteúdo do arquivo revela que Oldfield Thomas reclamava de administradores de museus das colônias britânicas que, no seu entender, dificultavam o traslado de espécimes. Chamava-os de “anti-britânicos”. Também se referia à expansão da coleção de mamíferos da Inglaterra como uma amostra de poderio nacional. Uma das coleções mais completas de mamíferos do museu é a de espécies da Índia, país que só se libertou da Inglaterra em 1947.
A postura dos cientistas de países colonizadores da época se reflete negativamente até hoje sobre o desenvolvimento da ciência em ex-colônias, entre as quais o Brasil se inclui. A demora no reencontro do pequeno morcego da Mata Atlântica tem tudo para estar entre esses efeitos, devido às dificuldades em se acessar estas coleções.
Segundo Vinícius Cláudio, da Fiocruz, estivesse o primeiro espécime no Brasil, a situação poderia ter sido diferente para toda a espécie.
Sem dúvidas é um fator limitante. Barreiras geográficas, financeiras e linguísticas inviabilizam a visita a museus para diversos pesquisadores, ficando a maioria das visitas atreladas a grants [financiamentos] oferecidos por essas instituições. Talvez se o holótipo estivesse no Brasil, essa espécie poderia ter sido redescoberta antes”.
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