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Enquanto o governo federal discute com empresas e associações propostas para estabelecer regras para a relação entre motoristas e entregadores e os aplicativos, uma decisão da Justiça aumentou a urgência sobre o tema.
A Uber foi condenada a pagar uma indenização de R$ 1 bilhão e a contratar formalmente os motoristas ligados ao aplicativo, segundo decisão do juiz do Trabalho Maurício Pereira Simões, da 4ª Vara do Trabalho de São Paulo.
O juiz considerou que a empresa “se omitiu” em relação à obrigação de cumprir a legislação do trabalho.
“A sonegação de direitos mínimos, a desproteção social, o ser deixado à margem, foram atitudes tomadas pela ré (Uber) de forma proposital, ou seja, ela agiu dolosamente no modo de se relacionar com seus motoristas”, diz a decisão.
O processo é de autoria do Ministério Público do Trabalho, após denúncia da Associação dos Motoristas Autônomos de Aplicativos (AMAA).
O juiz determina que 90% do valor estabelecido para danos morais coletivos vá para o Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) e 10% para “as associações de motoristas por aplicativos que tenham registro em cartório e constituição social regular, em cotas iguais e de tantas quantas forem encontradas pelo Ministério Público do Trabalho no Brasil”.
A perspectiva, no entanto, é que não haja mudanças para os motoristas neste momento.
A Uber informou que vai recorrer da decisão “e não vai adotar nenhuma das medidas elencadas na sentença antes que todos os recursos cabíveis sejam esgotados”.
A empresa argumenta que há insegurança jurídica e que a decisão foi oposta ao que ocorreu em julgamentos de ações de mesmo teor propostas pelo Ministério Público do Trabalho contra outras plataformas.
“A decisão representa um entendimento isolado e contrário à jurisprudência que vem sendo estabelecida pela segunda instância do próprio Tribunal Regional de São Paulo em julgamentos realizados desde 2017, além de outros Tribunais Regionais e o Tribunal Superior do Trabalho”, diz a empresa em nota encaminhada à BBC News Brasil.
A Uber argumenta, ainda, que não há legislação no país que regulamente o modelo de trabalho intermediado por plataformas.
Em uma decisão recente, o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), suspendeu um processo em trâmite na Justiça do Trabalho que reconhecia o vínculo de emprego de um motorista com uma plataforma.
Em uma análise preliminar, em julho, o ministro considerou que a decisão do tribunal destoava da jurisprudência do Supremo no sentido da permissão constitucional de formas alternativas à relação de emprego.
Motorista de Uber é empregado ou autônomo?
A discussão sobre se os motoristas de Uber e outros profissionais que trabalham por meio de plataformas – como os motoboys que fazem serviços de entrega – são empregados ou autônomos tem sido recorrente em tribunais e governos de todo o mundo.
O tema desafia a legislação existente em diversos países porque não tem se encaixado exatamente nas configurações tradicionais de trabalho – empregado ou autônomo.
Os trabalhadores que atuam por meio dos aplicativos têm tanto características de uma categoria como de outra – eles estão na chamada “zona cinzenta”, explica o economista Leonardo Rangel, pesquisador do Ipea com foco em trabalho e previdência, que analisou como mais de 15 países enquadram essa relação entre motoristas e empresas.
“Você consegue observar características de relação de subordinação – de emprego –, e características de trabalho independente”, diz Rangel.
Entre o que seriam características de uma forma clássica de relação de emprego, o pesquisador destaca que esses motoristas estão subordinados a um algoritmo das empresas que gerencia e avalia o trabalho.
Ao mesmo tempo, ele aponta que a característica mais marcante de trabalho independente nesse modelo é a flexibilidade.
“Ninguém obriga o entregador ou o motorista a estarem logados em determinado horário e determinado local.”
“Então você tem, ao mesmo tempo, um trabalhador subordinado ao algoritmo, cujo trabalho é gerenciado e avaliado por ele, mas ao mesmo tempo ele pode desligar o aplicativo e fazer outra coisa no momento que ele quiser.”
Embora essa dinâmica seja observada em outros tipos de serviços prestados por meio de aplicativos, mas motoristas e entregadores são “a face mais visível” desse modelo, aponta Rangel.
No Reino Unido, em uma decisão que ficou conhecida mundialmente, a Suprema Corte decidiu em 2021 que os motoristas eram “trabalhadores”, categoria profissional no Reino Unido que faz com que tenham direito a salário mínimo, férias e aposentadoria.
Na Califórnia (EUA), chegou a ser realizado um plebiscito sobre o tema, no qual os eleitores decidiram que motoristas da Uber e da Lyft não deveriam ser considerados funcionários.
No Brasil, há hoje um grupo de trabalho composto por integrantes do Ministério do Trabalho e representantes das empresas e de trabalhadores do setor que busca elaborar uma proposta para regulamentar as atividades executadas por meio de plataformas.
As negociações prosseguem, segundo informaram à reportagem associações de motoristas e motoboys e a Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia (Amobitec), que representa empresas do setor.
A expectativa é que se chegue a uma proposta a ser encaminhada ao Congresso, com regras para jornadas, remuneração e proteção social dos trabalhadores.
Após assumir o comando do Ministério do Trabalho, o ministro Luiz Marinho disse que daria prioridade à “regulação das relações de trabalho mediadas por aplicativos e plataformas, considerando especialmente questões relativas à saúde, segurança e proteção social”.
Isso será feito, segundo ele, “para assegurar padrões civilizados de utilização dessas novas ferramentas”.
No início do ano, ele disse que pretendia apresentar uma proposta de regulação do trabalho por aplicativo no primeiro semestre – o que ainda não aconteceu.
O tema foi mencionado também no plano de governo do hoje presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
O documento mencionava que sua gestão revogará o que chamou de “marcos regressivos” da legislação trabalhista e dizia que o governo pretendia propor “a partir de um amplo debate e negociação, uma nova legislação trabalhista de extensa proteção social a todas as formas de ocupação, de emprego e de relação de trabalho, com especial atenção aos autônomos, aos que trabalham por conta própria, trabalhadores e trabalhadoras domésticas, teletrabalho e trabalhadores em home office, mediados por aplicativos e plataformas”.
Um dos problemas apontados por especialistas em decorrência da ausência de regra sobre contribuição previdenciária de trabalhadores do setor é que eles não estão protegidos em casos de acidente ou de doenças que exijam afastamento do trabalho.
Também não recebem salário-maternidade e não deixam pensão por morte para dependentes.
Reportagem da BBC News Brasil mostrou que apenas um a cada quatro (23%) entregadores e motoristas autônomos paga contribuição ao INSS, segundo estudo de pesquisadores do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Ou seja, os outros 77%, além de não terem seu tempo de trabalho contado para a aposentadoria, estão desprotegidos.
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